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Maria Izabella Soares Aquino: Encantada da nossa história!

Maria Izabella se foi no Dia do Historiador e poucos dias depois da regulamentação da profissão, conquista de mais de 50 anos de luta. Estudante brilhante, esforçada, atenciosa e generosa com tod@s ao seu redor, esteve desde os primórdios do AHORU atuando em muitos projetos: as entrevistas com os indígenas do Sangue, a digitalização dos acervos da câmara municipal e da secretaria paroquial de Uruçuí e o projeto QR Code de preservação de pontos históricos da cidade. Foi semifinalista na Olimpiada Nacional de História do Brasil em 2017, e ainda no ensino médio apresentou trabalho em 2018 junta a outr@s colegas em evento científico para estudantes de graduação, sendo aplaudida por uma sala lotada. Mesmo tão jovem, Izabella foi fundamental para a cultura e história de Uruçuí e do Piauí, mas partiu muito antes do que deveria. A falta que sentimos não é apenas pelos projetos e sonhos interrompidos, mas pela saudade dessa pessoa carinhosa, dedicada e que autenticamente lutava pelo bem de tod@s e por um mundo mais justo, democrático e feliz. Ninguém sabe a hora que vai, e, por isso, aprendamos com Izabella, que teve sonhos, projetos e AÇÕES até o fim de sua trajetória. Lembrando dela, sigamos felizes na luta e pelo privilégio de termos convivido com essa pessoa incrível. Como diriam os índios no Nordeste – como os do Sangue, cuja história ela ajudou a contar – as pessoas não morrem, se encantam. Como se foi no Dia do Historiador, e pelo tanto que fez na sua breve vida, Izabella é uma Encantada, protetora da nossa história!

Índios do Sangue no trabalho “Indígenas gamela no cerrado piauiense”

Os indígenas Raimundo Alves dos Santos e Deuseni Pereira dos Santos, da etnia Guegue do povoado Sangue em Uruçuí, participaram da “Oficina de produção de mapas e boletim dos Gamela”, realidado em Bom Jesus em 2019, com indígenas Gamela e Akroá-Gamela do Piauí e do Maranhão. Desse encontro, foi produzido o “Boletim Estratégias de desenvolvimento, mineração e desigualdades: cartografia social dos conflitos que atingem povos e comunidades tradicionais  da Amazônia e do Cerrado / Indígenas Gamela no cerrado piauiense”, no âmbito do projeto Nova Cartografia Social da Amazônia. Nesse material, entre as páginas 27 e 29, é relatada a pesquisa do IFPI coordenada pelo professor João Paulo Peixoto Costa e que contou com o trabalho das alunas Marília Coelho, Allana Lacerda, Kamila Santos e Ianaelly Silva (indígena do Sangue) acerca das memórias e identidades da comunidade. Também aí, Raimundo e Deuseni contam das histórias, tradições, lutas e desafios dos índios do Sangue.

Para baixar, acesse o link: http://novacartografiasocial.com.br/download/01-indigenas-gamela-no-cerrado-piauiense/

Entrevista com Raimunda Pereira Borges, indígena do povoado Sangue (Uruçuí-PI)

Entrevista realizada em 18 de janeiro de 2018 em Benedito Leite-MA no âmbito dos projetos “O Sangue é pra ser nosso” e “Memórias de sangue”, pelas estudantes Ianaely Ingrid Alves e Silva (graduanda em ciências biológicas e indígena do Sangue), Marília Gomes Coelho, Allana Adne Oliveira de Lacerda e Kamila Silva dos Santos (3º ano do ensino médio em agroindústria) do Instituto Federal do Piauí, campus Uruçuí:

“O Sangue é pra ser nosso!”: memórias e histórias indígenas do povoado Sangue

Entrevista com Sebastião Pereira Borges e Raimundo Alves dos Santos (Raimundo Delmiro) feita em Uruçuí, no dia 6 de abril de 2017. Por questões de segurança e preservação da integridade dos envolvidos na entrevista, citações a pessoas vivas serão omitidas. Equipe de entrevista: João Paulo Peixoto Costa**, Ianaely Ingrid Alves e Silva***, Matheus Martins Soares****, Marília Gomes Coelho***** e Kamila Silva dos Santos******

 

João Paulo: Você [Sebastião] é descende dos índios?

Sebastião: Até por que é da parte da minha avó, mãe da minha mãe.

JP: Ah, mãe da sua mãe. […] aqui no Piauí se costuma dizer que mataram todo mundo.

S: Mataram os índios, mas tem o cemitério dos índios.

Raimundo Delmiro: Esse aqui [mostrando uma fotografia] é meu pai… Esse daqui foi o último a repassar a história, foi este “véio” aqui.

JP: Como era o nome dele?

RD: José Delmiro. É Jose Pereira dos Santos, mas era conhecido como Zé Delmiro. Ele é descendente dos portugueses. Já no caso dele [Sebastião], é descende dos portugueses com a índia, que sobrou do massacre.

S: Só sobrou uma.

RD: Quando o desbravamento do Brasil, começou pelo Nordeste né… aí veio vindo, veio vindo, passou Bahia, Pernambuco, esses lugares aí e essas história a gente já tem contadas nos livros. Aí eles entraram por aqueles sertões do Piauí e como naquela época tinha muita água e terra naquela região de Oeiras, naquele tempo os rios eram perenes, aí eles foram criar gado. O Piauí foi o maior criador de gado, assim como hoje es sendo de soja, e teve a vila de Oeiras, Amarante, Jerumenha e Bertolínia. Aí se dividiram em vários grupos. No caso daqui do desbravamento do sul do Piauí foi dessa família, lá em Picos tem a família Araújo, que o Araújo foi enterrado junto com os índios, que foi morto por eles mesmos que estavam desbravando. Aí eles sempre se orientavam pelo sol, porque naquele tempo não é o que tem hoje. Então eles seguiram sempre o pôr do sol né. Aí foram subindo, sempre cortando os rios. Quando chegou… quando eles fundaram a vila de Jerumenha, foram andando em direção ao pôr do sol e acabaram fundando a vila de Bertolínia. Chegando em Bertolínia eles continuaram e os índios sempre fugindo, porque era para trabalhar ou matar.  Duas coisas aconteciam: ou os índios aceitavam a escravidão… como eles não aceitavam… que eram brutos. Chegou em Bertolínia eles seguram o caminho passando pelo Irapuá, que hoje é Sebastião Leal, naquela mesma ladeira que hoje é o asfalto. Eles subiram a serra ali e seguiram em direção ao pôr do sol, e botaram o nome de Chapadão do Deserto, que hoje é a [Fábrica] Progresso, por que realmente era um deserto, eu ainda alcancei sendo deserto. […] aí eles seguiam, quando eles viajavam um certo tempo na chapada, no cerrado, encontraram um baixado, aí eles desceram nesse baixado, lá não tinha ladeira, não tinha nada, eles desceram e se aproximaram de um lugar chamado de Calderão de Cancão, que hoje é fazenda da Comag, quando chegou nos brejos do Sangue, aí tinha uma lagoa chamada Lagoa Grande. Essa lagoa era limpa, era só aquele mar de água. Segundo eles contavam a história, foram recontando a história, e muito rastro de índio, muito mesmo… como era tardezinha, resolveram voltar de novo para o Irapuá e para no outro dia chegar bem cedo. Saíram com os animais, de madrugada voltaram de novo na batida, que ali não é tão longe, só que chegaram muito cedo. Os índios estavam dormindo, só que quando eles chegaram na lagoa. Eles ficaram andando… andando… andando e nunca que encontravam… mas toda vida descendo na beirada do brejo, no rastro do índios. Atravessaram esse riacho, a lagoa que é um afluente do riacho do Sangue, logo que atravessaram o riacho, andaram pouco, mais ou menos uns 1000 metros da lagoa para o lugar onde eles abateram os índios. Chegando nesse local, os índios ainda estavam nas ocas, aí eles atacaram, certo que no meio da confusão, quando acabou, o riacho é perto, os índios corriam e caiam no riacho. Sei que quando eles atravessaram esse riacho colocaram o nome de riacho da Água Fria, o primeiro nome do riacho do Sangue foi riacho da Água Fria, só que quando eles chegaram lá, matando e os índios adoecendo, e indo pra água, quando terminou o massacre sobrou uma índia, e essa eles agarram, e foram criar.

JP: Como era o nome dela?

RD: Maria Simplícia. E ela, de 1887 ou 86,[1] mas nós já temos a história contada todinha dela. Aí enterram os índios e continuaram desbravando aqui no rumo do [rio] Uruçuí-preto, quando foi morar no Sangue foi andando e terminou ela tendo essa parte, essa família, porque não é muito essa família. Essa família dele [Sebastião] aqui é muita pouca aqui em Uruçuí, não é muito grande não, por parte na Maria Simplícia, estamos até brigando na justiça pra tenta resgatar uma parte da terra, só que como eles são muito pobres e como a gente sabe toda vida o rico é quem domina né. Então, es meio difícil né, mas vale a pena brigar, tem disso não, hoje em dia os direitos têm várias saídas, embora a gente não consiga, têm. E daí, quando terminou o massacre, o riacho já era Sangue, aí batizaram riacho do Sangue. Ainda hoje lá quando chove a terra fica vermelha. A lenda lá, que os moradores contam, que os pais dela moram lá, quando chove as primeiras águas a terra fica vermelha.

JP: Vocês já chegaram a ver essa terra vermelha?

RD: Não, que nós nunca fomos lá, mas lá lá, Sangue Velho. Sangue Velho é a aldeia, tem o cemitério e o riacho.

JP: O Sangue Velho tem gente que mora ainda?

RD: Não tem não.

JP: Mas o espaço lá né?

RD: .

JP: Como essas histórias sobreviveram? Quando vocês eram crianças isso era contado pra vocês?

RD: Era.

S: Era sim.

RD: Meu bisavô, o “véi” Delmiro, que era do mesmo tempo desse massacre, o Delmiro foi criado dentro dessas senzalas e foi contando, e não tinha história naquela época e passava… e como eu sabia, nas demarcações das serras pra não dormir muito cedo, aí contava uma história, contava outra, meu pai sempre contava essas histórias antes de dormir. Como tem a quem fez a estrada de Irapuá a Uruçuí, que hoje é bicho no burro, ali foi meu avô.

JP: Seu avô que já começou?

RD: É. Ele, meu pai, é, meu avô, nós tínhamos um dom […]. Nós temos um espírito de caboclo. Que acompanha, né. E por essa razão a gente ficou muito ligado a esse negócio de demarcação de terra.

JP: Quantas pessoas de lá são descendentes dessa índia? Ela seria sua bisavó?

RD: Ela é bisavó.

JP: Tem muitos descendentes dela lá no Sangue?

RD: Tem aqui e tem no Sangue.

S: No Sangue não tem muito não, mas aqui tem muito, aqui no Uruçuí.

RD: É porque no Sangue o povo foi expulso.

S: O povo foi expulso da terra lá, porque a terra lá toda vida foram deles lá e chegaram o pessoal lá, e foram tomando.

RD: O [antigo] prefeito.

S: O [antigo] prefeito. O problema dessa cidade aqui, o problema de Uruçuí, você quer saber o que é? É porque antigamente aqui ninguém tinha valor. Entendeu? Gente pobre aqui não tinha valor. Quem tinha valor aqui era uma família de gente rico aqui, entendeu? Era uma família de gente rica, aqui você não podia… se você cuspisse naquela parede ali sem autorização deles você ia preso. Por que aqui eles mandavam na igreja, entendeu? Eles mandavam na igreja, mandavam no fórum, mandavam no cartório, mandavam na delegacia, mandavam na prefeitura, em tudo era família de “Coelho” que mandava aqui. Quem era o outro que mandava aqui? Aqui ainda tem gente que pergunta assim: vocês não entraram na justiça antes por causa dessa terra por quê? Eu digo: entrar na justiça como? No Estado, você já deve ter ouvido falar no Bastião Leal, num já? Quem mandava no Estado era o Bastião Leal, então o Bastião Leal era da família de “Coelho”. Aqui quem mandava no município era a família de “Coelho”. Num era eles que mandavam? Aqui qualquer coisa que você fizesse aqui eles mandavam lhe dá uma surra, como teve muita gente que eu presenciei apanhar lá na fazendo do Ribamar Coelho. Teve um cara lá, só por que ele empurrou o Zé Almir, que é o sobrinho do Ribamar Coelho, o Ribamar Coelho pegou e surrou, por que eu estava presente, eu era menino nesse tempo, mas eu era menino grande, e vi que surrou, amarrou, jogou dentro de uma caminhonete e trouxe para cá, porque o cara não era daqui, entendeu? Olha aqui no Uruçuí, tem uns quinze anos, por aí assim, é que tendo uma, entendeu? As pessoas estão tendo uma liberdade. Mais para trás ninguém tinha liberdade, de nada, você não tinha liberdade nem de falar, a não ser que você fosse do lado deles, para falar a língua deles. A realidade aqui de Uruçuí é essa. Quem foi que vendeu o “” no sitio de Uruçuí? Quem foi que vendeu? Mas pode dizer, foi eu? O problema é que as pessoas não têm coragem de falar, entendeu? Agora aí nós estamos brigando por um pedacinho de terra desse tamanho e um maior rolo.

RD: Mas veja bem a Data Sangue. A Data Sangue foi assim, quando foi dividida a Data Sangue, é que a Data Sangue pertencia a essa família de meu pai né. Aí quando foi dividida essas terras do Sangue… quem referiu a Data Sangue foi… porque, na verdade, eles não tinham nada, até como hoje não tem nada né. Quem tinha as coisas eram os chefes daqui, os prefeitos. Então, um da família Coelho foi quem referiu a Data Sangue, mas a forma de partido da Data Sangue pertencia a essa família, o pai da vó dele [Sebastião], a vó dele porque foi criado junto. Aí que casaram na família, a bisavó dele [Maria Simplícia], ela foi casada na família, e a avó dele também, foi tudo na outra família. Aí foi por isso que misturou o sangue de índio com de português. Eles, na demarcação, não tinham condição de pagar a demarcação que era tudo pago, naquele tempo não tinha nada para dar para ninguém, era cada quem por si. E como eles não tinham, ficaram como ausente e desconhecido da Data Sangue. Na região para cá ficou outras pessoas, pra lá eles ficaram nos Gerais dos Brejos e lá moraram a vida toda. O prefeito, já muitos anos depois, no início do século XIX, o prefeito daqui, Ribamar Coelho, ele criou umas cartas de aforo, aforou todas as terras de ausência do município de Uruçuí, então vendo todo o município, vendeu mais ou menos cinco mil hectares de terra. Aí ele, mais meu pai, eram muito amigos, era da família. Aí eles pegaram, nos anos sessenta, meu pai chamou eles para melhorar a estrada do Sangue, essas coisas, e levou ele [o prefeito] para lá, e deu uma pequena área de terra para o prefeito, tipo uma chácara, uma chácara de uns duzentos hectares, mais ou menos. Só que eles trabalharam muitos anos junto com eles, junto com o Ribamar Coelho, muitos anos mesmo, mas nunca perceberam, ele não tinha o conhecimento que existia uma lei de transição, número quatro, que dava direito aos municípios aforar, só ele da família sabia e só eles aforavam.

JP: Ou seja, a lei não chegava pra quem era pobre.

RD: Não, pra ninguém. Pelo que pensaram que não, onde eles trabalhavam, nos Gerais dos Brejos, já estava tudo vendido, por isso que eles saíram de lá. Só que agora com essa nova lei, que também não presta, porque os ricos vão passando por cima, mas pelo menos brigar você briga.

S: E antigamente a gente não tinha o direito nem de brigar.

JP: Antigamente, apesar de se dizer que desde a abolição dos escravos todo mundo é livre, mas como vocês disseram, na prática não é.

S: Não, não, não era. As coisas só melhoraram. Um pouco, hoje você pode chegar e você tem o direito de falar. Antigamente se você era pobre… entendeu? E [se] você chegasse em um advogado para brigar com um, ele nem pegar sua causa ele não pegava, entendeu? Hoje não, hoje você tem uma liberdade, que se você tem uma questão com um rico, já tem um advogado que pode pegar sua questão, ele visando a ganhar, entendeu?

RD: E aí, voltando a história dos índios, aí nós conseguimos até descobrir qual é a descendência deles.

JP: Essas pesquisas que falam sobre os índios daqui dizem que se acabou tudo. E quando você diz que sobrou pelo menos um sobrevivente, então não se acabou tudo.

RD: Não, não acabou. Ela nunca foi registrada. Inclusive, eu gosto muito de pesquisar […]. É porque a história dos índios ela ficou escondida dentro da história… ficou só contada mesmo entre família porque não foi publicado no livro de Uruçuí, na história de Uruçuí, porque prejudicaria a família dos Coelhos, do velho Manoel Leal, que foi quem pegou todas as terras da região. Na verdade, como a gente fez pesquisa, pesquisa foi aproximando mais as coisas, pegamos o ponto de Atimbira e Acroás.

JP: Quem descende da Maria Simplício seria então a sua avó?

RD: É.

JP: Ela também falava essas histórias?

RD: Sim.

JP: Você também conviveu com ela, ne?

RD: Convivi.

JP: Ela também contava essas histórias. Ela se dizia Índia?

RD: Falava. Tem muito sinal de índio

S: Tem muito sinal de índio. Tem pessoas velhas ainda da minha família, minha mãe com 82 anos.

JP: Ela diz que é Índia?

S: É. Tem um tio meu com 80 e poucos anos, eles são umas pessoas da pele escura e não têm pelo.

RD: A maioria deles é assim: pouco pelo.

S: Gente que é descendente de índio não tem cabelo no sovaco. Mamãe não tem.

JP: Você [Sebastião] se diz índio? Você se acha índio?

S: Eu acho que sim… Porque eu já sou mais longe, entendeu?

JP: O pessoal antigo antes de vocês tinha medo? Sofriam preconceito por ser índio?

S: Não. Aqui na região não porque a gente morava lá no sangue, tipo uma aldeia. Todo mundo junto, uma casa aqui, outra ali, outra ali… entendeu? Tipo uma aldeia. Tinha gente particular, que a gente não tinha muito com contato com gente particular. A não ser outro pessoal que chegaram, que foram, pegaram essas terras e foi indo…todo mundo saindo de lá.

RD: Na verdade eles foram escravizados. Eles escravizaram numa escravidão branco.

S: A gente não tinha o direito de falar.

JP: Vocês não tinham o direito nem de falar?

S: Não! Dessas coisas não. Porque eles chegaram, o Ribamar Coelho chegou e cercou. Nós morava dentro de uma roça.

RD: Na verdade a vó deles, que moravam tudo lá juntos, eles trabalhavam quase nada e vivia da caça.

S: Caçador eles.

RD: O Carlos era o maior caçador da região. E o que eles fizeram? Acharam que a condição deles não existia, eram muito pobres.

S: É. Naquela região não tinham nada, o povo vivia disso mesmo, caça.

RD: Não tinham nem roupa pra vestir. Eles pegaram e botaram eles como quem tivesse criando. Aí compraram o primeiro trator, fazia uma rocinha pra ele, outra pra acolá. Só que como a intenção deles era dominar em terra. Como não tinham banco naquela época pra eles tomar emprestado, como a lei de número 4 de transição dava direito ao prefeito aforar… Mas eles aforavam pra família deles. Pra eles [do Sangue] não! Botavam o nome deles [os particulares], né. Botaram nome de outra família. No caso deles lá, eles colocaram nome de uma pessoa que ainda é viva. Afonso Martins. É de 1955 a data de aforo e trinta milhas de hectares de terra. O cara tinha 20 anos e já tinha 30 milhas de hectares de terra no município de Uruçuí. Justamente isso ao lado deles. Depois eles pegaram outra de 40 mil, nome de Afonso Martins, e jogaram em cima das terras deles de onde eles trabalhavam. E gente lá trabalhando. Eles eram muito bonzinhos com eles. Mas chegou um ponto na época que veio muita gente de Pernambuco na intenção de criar gado, aí eles foram e venderam pra família Teixeira, 20 milhas de hectares de terra onde eles trabalhavam. Quando eles pensaram que não… num era mais que eles tinham, que a terra como se fosse deles, como foi que não, “não, aqui é de […]. Vocês agora vão trabalhar pra […].” E ficaram trabalhando…

S: Inclusive lá tem tudo. Lá tem Caldeirão feito, tem feito na pedra. Pilão no lajeiro, tudo tem lá. Essas coisas já é da minha época. Sei tudim lá onde é, qualquer pessoa que chega e aqui eu posso mostrar tudim. Agora pode chegar pra algum desse pessoal ai, “onde é lugar tal?” Duvido onde eles saibam onde é. Eu sei lá tudinho onde é, entendeu? Que eu era menino e vivia lá naquelas roças lá, sei tudinho.

RD: Na verdade a Data Sangue tinha que ser dos índios. Os 27 mil hectares de terra da data sangue tinha que ser dos índios e dos descendentes dos índios, e não de outras pessoas. No começo dessa briga, tentei me aproximar desse lado aí, mas fica muito difícil. Aí por isso que a gente tentando. Foi dado o nome de Data Sangue por causa dos massacres dos índios. Mas não é que não sobrou ninguém, sobrou sim, sobrou essa pessoa

JP: E ainda tem descendentes dessa pessoa?

RD: Tem. Deve dar 300 ou 400 pessoas. Porque é assim… Eles [a família de Sebastião] são descendentes de índio daqui, a outra parte é branca, é português. Já por parte de mãe da bisavó dela [Ianaely, neta de Raimundo], ela descendente dos índios do Canto do Buriti. A minha vó é do Canto do Buriti.

JP: Sua avó era índia?

RD: É índio misturado com negro lá do Canto do Buriti.

JP: O senhor lembra o nome da tribo dela?

RD: Não. Pesquisei sobre isso. Até um dia eu falei com o prefeito de Itauera [próximo a Canto do Buriti], ele disse que se eu quisesse ir lá fazer umas pesquisas me dava o motorista, me dava carro.

JP: Esse pessoal do Canto do Buriti veio pra cá quando?

RD: Na seca de 1932

JP: Na seca de 1932 e aí foram pro Sangue?

RD: Não, eles foram pra Cascavel, entre a [fazenda] Progresso e Irapuá [atual Sebastião Leal]. Aí ficaram ali, aí meu pai casou, a dele casou também e vieram tudo pro Sangue. Aí houve a demarcação da terra do Sangue dos anos 50, de 1953, já tavam quase morando lá mesmo no Sangue. Só que eles ficaram morando mesmo pra cá pro Sangue, sempre no final dos Brejos.

S: Ali da Progresso, da [fábrica] Bunge lá, você chega no Sangue. Uma feira do Sangue ali, nós ficava lá no final. Lá hoje tá tudo abandonado, não mora ninguém.

JP: Vocês falaram também na questão dos caboclos, das entidades caboclas que ainda vivem com vocês. Isso aí também era contado pra vocês?

RD: Não, era não. Só que muitas vezes meu tio que é do Maranhão, ele é espírita, sempre dizia algumas que depois ficou sendo a verdade. Eu também falava, meu pai também falava, que hoje é a verdade.

JP: A religião do povo do Sangue? São todos católicos?

RD: São todos católicos.

JP: Mas em relação à memória dos índios mais antigos? Das entidades, dos cabocos, se fala de alguma coisa disso lá? Os mais velhos falavam disso?

S: Os mais velhos falavam, hoje não.

JP: O que é que os mais velhos falavam?

S: Eu não lembro não.

S: Os mais velhos… Têm pessoas mais velhas do que eu, minha tia, minha mãe, eles têm mais coisa pra dizer.

RD: Mas têm vivos lá. Existe uma pessoa ainda, a irmã do meu pai, que ainda é viva.

S: Só tem ela.

RD: É, só tem ela, que ela conta ainda. Ela conta meio misturado, mas conta.

JP: Mesmo os índios sempre terem habitado aquilo ali, e os descendentes dos índios, que se dizem índios também, ainda viverem na terra e morarem na terra, mas vocês acham então que isso não é suficiente pra ter liberdade aqui, né?

S: Não

RD: Não, pode ser porque… a gente vai levar o caso a Brasília, sabe.

S: Pode ser porque tamo brigando, né

JP: Mas a depender do povo que no poder aí…

RD: Não, eu acho que não.

JP: Mas o fato de você ser índio não significa nada, né.

S: Hoje é que até pra você… de você pegar uma testemunha… a gente precisando de uma testemunha, a gente não acha o pessoal que conheceram nós lá, sabe da história todinha, pouca gente que quer ir, entendeu, com medo de represália.

JP: Se tem medo de represália então não tem liberdade, tem?

RD: Tem não.

S: Não existe liberdade aí.

RD: Foi até proibido. Botaram até cadeado pra eu… Quando eu comecei com isso, o cara veio aqui me desafiar. O […] veio aqui. Eu digo “você morre é agora”. […] Ele sentou aqui, o irmão dele em pé ali, e eu tava sentado ali, e [incompreensível] tinha uma faca. E ele começou a conversar, conversar, e aí foi se aproximando… porque ele diz que eu sou o mentor. E eu disse “mentor de que, […]? Se tu nasceu e se criou nas costas deles lá no Sangue! Tu comia lambú, tu comia preá, tu comia cotia, tu comia veado, tudo matado por eles… E eu que sou o mentor? Por que eu que sou o mentor?” Aí ele disse “pois é, mas agora eu sei como eu lhe tratar”. Eu digo “o homi vem”! Aí eu tava ali, aí eu me levantei. Aí eu digo “põe-te da minha casa pra fora agora, seu féla da puta!” [risos] […]. O cara esfriou nessa cadeira, bem aí onde tu . Esfriou em cima da cadeira, que ele viu a faca, aí ele ficou travado em cima da… Ai… “pois levanta, vai embora”.

S: no processo lá que diz que nós nunca moremo lá. O processo foi em Teresina lá. Tem num sei quantas testemunhas de lá dizendo… gente que morava lá dizendo, que chegou depois de nós, morava junto lá, testemunhando contra nós pra juntar com ele porque eles são rico, entendeu? Pobre tem raiva de outro pobre. O que existe é isso.

JP: Eu não sei se vocês sabem, em outros lugares aqui no Nordeste, e no Piauí também, têm algumas comunidades que tão começando a falar publicamente que são indígenas. Em Piripiri, Queimada Nova, Lagoa do São Francisco…

S: Tem, tem, tem muitas.

RD: Já pesquisei sobre isso

JP: O que é que o pessoal que é mais rico, as elites dessas cidades dizem? Eles dizem que exatamente isso aí. Que eles nunca tiveram lá, que nunca tiveram índios.

S: Que nunca moraram… Oxente, lá na…

RD: Mas a gente tem como mostrar.

S: Mas os [incompreensível] lá na… Que nós nunca pisemo lá.

RD: Tem como a gente testemunhar. Tem o açude feito por eles.

JP: Pelos índios?

RD: Não, pelos descendentes.

S: Não, por nós, pelo bisavô. É índio porque…

JP: Porque é filho de índio, né.

S: É.

RD: Tem um barraco feito pelo o véi Delmiro… trabalhava com pilão lá no lajeiro.

S: Tem várias coisas… Têm umas roças lá… Né nem cajueiro, porque cajueiro dá em todo lugar. O problema é pé de coco babaçu. Umas roças lá que tem coco babaçu, que só dá se for plantado. Naquela região lá só dá plantado. Porque coco babaçu tem a região onde ele dá, né. Mas lá só dá plantado. Lá nas casas véia onde nós morava tem muito pé de coco que foi plantado, que eles plantaram. Uma roça no Caatinga de Porco, que chama até a “Roça dos Pé de Coco”, ali na hora que dá… na ladeira do Caatinga de Porco pode pegar lá no baixão, e lá onde era a roça, tem a roça dos de coco, que tem coco babaçu num lugar deserto, que se você vê lá num precisa nem eu dizer, e você já acredita, que um lugar daquele não é pra ter coco babaçu. Não era pra nascer. Não tem como nascer. Será que foi o Ribamar Coelho que plantou? Será que foi eles que plantaram coco babaçu ali? Eu não gosto de falar nessas coisas porque… eu gosto de falar direto! Eu não tenho medo de falar. Se eu falar eu falo mermo, eu falo e digo o nome! Eu não tenho história não! Tem um tal dum bicho ali que me desafiou, que era um dos bate-pau dele lá […], ele me desafiou um dia ali, eu dei até uns tapas nele um dia ali, entendeu? (risos) Ele num me desafiou? Foi um dos caba mais safado que tem! Você vendo isso aqui? [aponta para uma cicatriz redonda na perna, cerca de 10 cm de diâmetro]. Olha isso aqui. Isso aqui era quando eu morava lá, eu vigiava roça, entendeu? Que naquele tempo a gente plantava roça mas tinha que vigiar, que naquele tempo tinha muito… Fulano vai fazer isso fulano vai fazer aquilo, os meninos aqui, da Raimunda vai cortar lenha, fulano chegava e determinava, mandava, agora não obedecesse não pra ver, entendeu… Chegava lá e dizia: fulano fazia isso, fazia aqui… O Ribamar Coelho vai chegar aqui tal dia aqui com o pessoal e é pra tudo pronto, que ele era que o chefe lá.

RD: Ele era ditador, na época.

S: Entendeu? Lá não tinha história, vou lhe fala logo, lá não tinha história de você dizer assim: “não, eu não vou”. La eles chegava e ditava as regras, é pra fazer desse jeito e tinha que fazer, entendeu? Lá era mulher, era homem, era tudo. Pode caça aí, as meninas bonitas tudim era deles, entendeu? As filhas bonitas tudim era deles, inclusive tem muita gente aqui que tem filhos de gente rico, daqui, do […],  de várias pessoa, cace aí que você acha, eu não mentindo não. Eu tô mentindo por acaso?

RD: Não, não.

S: Eu não tô mentindo, aquelas meninas bonita que tinha aí, novinha, que nem essa daqui [aponta para Ianaely], era tudo deles, dos véi, dos fi novo, você pode procurar, é só você procurar que você acha.

JP: Eles achavam que vocês eram escravos deles?

RD: Achava não: era.

S: Achava não: tinha certeza. Óia, nós tamo bem aqui, se eu mando em vocês e não pago vocês, vocês são o que meu?

JP: São escravos.

S: Entendeu? Então… a história é essa.

RD: E ele é prova, porque é um descendente, que meu pai conviveu com a mãe dele.

S: Eu sou a prova viva, porque eu nasci e sai de lá com quase vinte anos, vim embora pra cá. Viemos pra cá “puxando a cachorra”. Hoje graças a Deus tenho minha casa pra morar, muito boa. Tenho meu carro pra andar também, entendeu. Aprendi profissão.

JP: Mas o passado…

RD: Ah, o passado foi triste.

S: O passado num gosto nem de lembrar, entendeu? Ostudia [outro dia], eu e Raimundo fumo lá no coisa dos índios, fumo lá visitar, foi o Raimundo aqui, uma irmã minha… eu não gosto nem de ir lá, entendeu? É um lugar que eu não gosto de ir nem de ir no rumo, por que eu não tenho lembrança boa de lá. Lembrança boa nenhuma. Só sofrimento… Quando nós viemos de lá para cá, que mamãe veio com nós, todo mundo dizia, o Bira Rocha disse: “olha, (mamãe tem um apelido que ela nem gostar num gosta) a Raimunda Badoga vai embora daqui, mas os pés levam e a barriga trás. “Só que quando voltar não tem mais lugar não por que eu vou tacar veneno aqui dentro de casa”. Ele tacou veneno dentro da casa, entendeu? Botou veneno na casa. Mas graças a Deus que nós estamos… A vista o que nós éramos, nós estamos todos ricos hoje, entendeu? Porque nós não tinha nem um chinelo desse para calçar e hoje eu tenho minha casa, tenho minhas coisas. Meus irmãos tudo tem carro, inclusive tem um aqui que é secrerio do prefeito, é o Nezo, entendeu? Hoje nós estamos todos bem de vida, tenho os filhos tudo formado, a mulher formada, todo mundo. Graças a Deus, a vista o que nós era lá, nós hoje somos ricos.

RD: E para contar a forma como eles viviam nos anos cinquenta pra cá, eles mesmo que tem que contar, porque foi eles que sofreram.

JP: Os descendentes dos índios sofreram mais?

S: Mais de que nós, por que nós somos mais novos, nós tivemos como sair fora e os outros… Aí não, nós tivemos como sair fora, os outros sofreram até, e os que não morreram já foi expulso como o tio Carlos mesmo foi expulso, do […], trabalhou até não aguentar, quando não aguentou botou pra fora. Hoje ele vive aleijado véi, lá na Santa Fé ali, ele mora com a mulher. Come hoje porque o governo dá o aposento e ele come. Entendeu? Ele tem até os dedos cortados na mão. Se não fosse isso ele tinha morrido de fome, porque não tinha como sobreviver. Como é que tu trabalha numa empresa, aí tu trabalha a vida todinha e no dia que tu véi, tu sai e tu não tem dinheiro pra comer? Se não tiver aposentadoria tu vai morrer de fome? Pois o caso dele foi esse.

RD: Eles foram escravos, escravizados. Escravizados duas vezes, né?

JP: O fato deles serem índios, na opinião de vocês, aumentava a violência contra eles?

RD: Não sei se aumentava.

JP: Porque vocês falaram que os que mais sofreram foram justamente os índios e os descendentes.

RD: É porque eles moravam e trabalhavam nas terras que foram griladas.

JP: Pelo que vocês estão dizendo, se vocês falarem que são índios ou pelo menos que vocês descendem desses antigos índios, pro pessoal lá em cima é perigoso.

RD: Ah, era. Era discriminado. Houve discriminação sim!

S: Houve, com certeza. Eu acho que houve, porque com nós que somos mais novos houve, quanto mais eles que eram as pessoas que não sabia de praticamente nada.

JP: Então você falar que é índio hoje é perigoso pra esse pessoal?

S: Claro!

RD: Até quem defende eles, por causa de ser Sangue, né? Só que eu nunca tive medo de nada.

S: O bom hoje é que você pode ao menos falar…, mais como eu falando pra vocês aqui, se fosse uns anos atrás, eu não podia nem falar pra vocês aqui!

RD: Quando eu entrei na história, algumas pessoas me avisaram: “Rapaz eu acho que tu vai ser morto”. “Por quê?” Aí contou. Eu falei “não rapaz, pois é o seguinte, pois vai matar, porque eu vou continuar a historia de índio ainda, é uma coisa que eu vou continuar”. Agora eu resolvi continuar a historia dos índios, só que aí, as possibilidade, é muito… Muito… Nós mora muito distante das coisas que a gente tem que falar, Brasília, nesses lugar, né? Aí nós saímos se apegando, foi logo criado a vara agrária. Dia 04 agora [4 de maio] vai ser a audiência. Até hoje as testemunhas difícil pra gente arrolar, só pra dizer que eles foram criados lá.

JP: Alguém do governo procurou ou quis ajudar vocês? Nem o governo do Estado? Nada?

RD: Não, porque tudo do governo aqui é… O governo do Estado é aliado a eles.

JP: Antes de encerrar a entrevista, eu queria, por favor, que vocês dissessem o nome de vocês, onde nasceram e a data de nascimento.

RD: O meu nome é Raimundo Alves dos Santos, conhecido como Raimundo Delmiro, nascido no Sangue, e… Até hoje fui… Fui criado no Sangue, nascido no Sangue, meu pai é do Sangue, a minha mãe é de Itaueira, veio pro Sangue em 1932, por causa da seca de 32, e toda família é do Sangue. Nasci no dia 20 de fevereiro de 1950.

S: Eu nasci no Sangue também. Eu sou do dia 01 de agosto de 63. Sebastião Pereira Borges. Eu nasci no Sangue e me criei no Sangue, e meu pessoal todo é do Sangue. Entendeu? Nasceram tudo no Sangue.

JP: E o Sangue é pra ser de quem?

S: O Sangue é pra ser nosso! Entendeu? Pode ser que nós não ganhe, mas nós vamo brigar!

JP: Mas lutar vão!

S: Vamo!

 

** Professor do Instituto Federal do Piauí – campus Uruçuí. E-mail: joao.peixoto@ifpi.edu.br.

*** Aluna do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas do Instituto Federal do Piauí – campus Uruçuí. E-mail: ianaellyingrid@hotmail.com.

**** Aluno 3º ano do curso do ensino médio integrado ao técnico em agropecuária do Instituto Federal do Piauí – campus Uruçuí. E-mail: soareamatheus9@gmail.com.

***** Aluna do 2º ano do curso do ensino médio integrado ao técnico em agroindústria do Instituto Federal do Piauí – campus Uruçuí. E-mail: mariliacoelha23@gmail.com.

****** Aluna 2º ano do curso do ensino médio integrado ao técnico em agroindústria do Instituto Federal do Piauí – campus Uruçuí. E-mail: santtoskamila4@gmail.com.

[1] A data real do massacre, provavelmente, remete ao século XVIII, e não ao XIX, como conta Raimundo Delmiro. Há registros da campanha de João do Rego Castelo Branco na bacia do rio Uruçuí-preto nos setecentos. Cf.: MOTT, Luiz. Conquista, aldeamento e domesticação dos índios gueguê do Piauí: 1764-1770. Revista de Antropologia. São Paulo: USP, vol. 30/31/32, 1987/88/89, p. 67. APOLINÁRIO, Juciene Ricarte. Os Akroá e os outros povos indígenas nas fronteiras do sertão: as práticas das políticas indígena e indigenista no norte da capitania de Goiás – Século XVIII. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Pernabuco, 2005, p. 68-69.

Nosso sangue de índio – Anchieta Alves de Santana

O povoado Sangue fica a 48 km da sede do município de Uruçuí. Uma região de veredas extensas, pássaros que encantam e riachos temporários saciando sedes em meio a muitas árvores retorcidas e uma pequena diversidade animal.
Sangue não é nenhuma homenagem rendida aos colonizadores desses recantos do sul piauiense, mas um registro de um massacre sanguinolento ocorrido nas caatingas daquele lugarejo. Foi o maior ato de extermínio indígena ocorrido nesta grande região que, à época, meados do século XVIII, pertencia à província de Jerumenha.
Ilustres memórias – dentre elas meu avô José Delmiro – e os anais da história dão conta de que a caça aos índios era obsessiva, não respeitava o gênero nem a faixa etária dos nativos. Mas não era uma guerra. Não. Definitivamente, não. Não se guerreia com indefesos. Massacra-se. Consta que um comandado de João do Rego Castelo Branco, Cipriano Borges, após várias investidas no rito da exterminação buscando novas terras, descobriu vestígios de índios nas proximidades de um riacho daquela localidade. E, como todo bom cão caçador que pressente a presa, ficou bastante eufórico ao tempo em que abria caminho em meio a árvores de cipós e espinhos daquela flora ainda virgem. O velho bandeirante, já experimentado em outras investidas contra os nativos, já sabia que estava na trilha dos Acroás. Como o grupo estava diminuto, mandou um portador buscar reforço de um agrupamento que seguia em direção às margens do Gurguéia.
Dias depois, em certa tarde de inverno, após exaustiva caminhada, avistaram, do alto de uma serra, movimento da tribo. A alegria comemorativa ficou estampada na face de cada membro do grupo de caçada aos nativos. Ficaram, por um bom tempo, em estado de observação.
Cipriano, após estudo do ambiente, ficou em silêncio por algum tempo e começou a ditar os procedimentos de estratégias:
__Vamos aguardar o momento certo para fecharmos o cerco de forma implacável.
__ A melhor hora será após a meia noite, para termos certeza de que não há nenhum nativo acordado – sugeriu Manuel Leite, que não parava de afiar a ponta de sua lança.
__Está combinado – sussurrou Cipriano.
O resto do grupo ouvia e gesticulava concordando com as sugestões apresentadas pela linha de frente do comando exterminador.
Já é madrugada. Anunciou o escravo Zunga olhando a posição dos astros. Após os acertos dos últimos detalhes, conferência das armas de punho…rumaram para o cerco à tribo acroaense que dormia sono profundo. Talvez sonhando com a história de sua tribo e sua nação, após fugirem de inúmeras emboscadas; ou, quem sabe, a temática do sonho fosse a busca do entendimento dos motivos que levavam o homem branco a, todo custo, apossarem das terras bem cuidadas pelo homem nativo há mais de dois séculos. Índios também sonham.
Os comandados rastejaram-quase que deslizando morro abaixo, em busca de uma melhor posição para um ataque compensador. Cipriano checou as posições e deu ordem de ação. Já passava das três horas da manhã. O alvorecer no sertão já orientava alguns norteamentos.
O ataque saiu conforme combinado. Detrás de cada moita, de cada tronco de árvore centenária, saía um bando, armado até os dentes, tomado por uma sede de morte. Sede letal.
Foi um clamor intenso: índios acordavam atordoados e eram golpeados pelas lanças afiadas; crianças que tentavam correr eram cortadas ao meio como se faz com bananeira após a colheita dos frutos. Em meio àquele massacre, era impossível usar tacape, arco e flechas…. Aliás, nem se lembravam de tais armas. Nem tampouco o que estava acontecendo. Desorientação total.
Os gritos e larídeos estridentes de um povo indefeso ecoavam nas serras daquele lugarejo. Mas nada, nada mesmo, amolecia o coração dos colonizadores usurpadores e tiranos. O líder, Cipriano Borges, vibrava com a queda de cada índio se esvaindo em sangue. Sangue puro de nativo. Sangue dos legítimos donos daquelas terras que ora estavam sendo tomadas a ferro e fogo. Naquela situação era impossível fugir ao cerco mortífero de tática de massacre. Mas, aos poucos, as folhas foram ficando vermelhas e o amontoado de cadáveres indígenas dava a dimensão do aniquilamento… do massacre…do maior genocídio nesta região do Piauí! Ali, já não se pisava no mesmo solo. Agora, um tapete vermelho formado pela matéria sanguínea indígena era pisoteado.
Ao romper da aurora, viram que a missão estava concretizada. Também ensanguentados com o sangue que jorrava dos índios, os tiranos chutavam os cadáveres em busca de algum sinal de vida. De repente, no meio do lamaçal sanguíneo, uma pequena criança começou a gritar. Era uma indiazinha. Era uma inocente que chorava a dor de sua tribo sentada em meio a centenas de corpos familiares. Chorava inocentemente uma dor coletiva. Registrava-se, ali, quiçá, na história, a primeira vez que uma criança chorava, não apenas pelos pais, pelos caos ali instalado, mas pela nação nativa. Os gritos desesperados daquela pequena indiazinha indicavam a intensidade do sofrimento.
Ordenado pelo chefe, os capangas limparam a garotinha e, após discussões, ela foi levada para o aldeamento São Félix da Boa Vista, que ficava no entroncamento dos rios Parnaíba e Balsas. Era o ano de 1756.
A indiazinha recebeu o nome de Maria, foi escravizada, sofreu vários tipos de violências e morreu aos vinte e cinco anos de idade, vitimada por doença dos brancos.
Esta é a triste origem do nome do povoado onde nasci, passei parte de minha infância e ainda vivem meus pais e outros parentes.

(1984)
Anchieta Alves de Santana
Uruçuí-PI