Desenho de um dia qualquer – Anchieta Alves de Santana

O quarteirão do Fogoso, um bairro por onde transito quase todos os dias, fugindo da rotina, acordou sem alterações. Nenhuma movimentação diferente no comportamento da vida social. Seis horas da manhã. O sol ainda se espreme por trás de um morro para mostrar sua face. O formigueiro humano daquele arrabalde, timidamente inicia sua jornada diária. No bar da esquina, enquanto a pequena Bruna compra um quilo de açúcar e um pacote de fumo para seu vô, Zé Maroca toma sua primeira dose de “maranhense”.
__Sus! Essa é pra batizar o dia. Exclama o dipsomaníaco assumido.
Para ele, o dia é muito exigente e adora ser batizado. E aí as coisas acontecem sem frescuras…Outra dose…outra dose…mais batizadores aparecem saindo de becos e ruas estreitas e desprovidas de saneamento básico…Em pouco tempo, o dia já tem um verdadeiro batalhão de sacerdotes do pileque. Todos querem batizar o dia. O ambiente fica bastante animado. Em geral, futebol e política dão a tônica dos discursos. Mais futebol do que política. Mais dose do que futebol. Nenhum outro bairro tem tantos teóricos e craques do esporte, como naquela esquina do Fogoso. Lá tem, dentre outros: Zé Bedeu, Neguinho da Gilda, Edimilson da Deusa, Mondeiro, Abílio, Chico Mata-Porca, Nonato Mira, Gilo, Reinaldo, Benedito do Gonçalo, Manoel da Neci, Lindoca, Francalino, Raimundinho do Cinego, Raimundinho Carcará, Zé Pezão, Bitor, Zezeca, Alcides, Chico do Cláudio e outros veteranos. Tem também Rondinele, Luís Carlos, Wanderson, Wesley, Wendell que são craques das últimas gerações.
Aos poucos, as portas se abrem completamente e o trânsito feito de homens torna o bairro mais cheio de vida e de uma movimentação impressionante que não se encontra em outra parte da cidade.
Na Rua Artur Coelho, os cachorros de todo dia iniciam uma “farra” para saber quem vai acasalar com uma cadela que se mostra elegante e faceira. A disputa é duradoura e, de longe, nem um pouco amigável. Numa casa sem número, no final da rua, uma criança chora a ausência da mãe, que já foi trabalhar; a televisão do vizinho varou a noite ligada e ainda se ouve um áudio que tematiza recessão econômica. Indo em direção ao centro da cidade é possível ver a meninada a caminho da escola sob o olhar e recomendação dos pais.
__Vai estudar pra ser gente, menina! Recomenda o pai de uma garotinha por nome Marli.
__Ué! Sou gente! Exclama a menina.
__Deixa de conversa garota. A cidade precisa de mulheres e homens sábios. Retruca o pai.
A prole, sem argumentos convincentes, é vencida pela autoridade paterna.
Onze horas, o velho Lázaro já não se encontra mais na calçada onde costuma ficar todos os dias pela manhã. O Mondeiro, após sua lida diária, chega empurrando sua bicicleta; a meninada, por falta de merenda, retorna mais cedo da escola.
De repente, lá na esquina:
___Seu filho duma puta! Quem mandou fazer isso?
Um homem barbudo, de olhos vivos e arregalados, barrigudo, cabeça chata e com pouco cabelo, que, na mão direita, segura uma laxa de lenha, estava enfurecido. Parecia bastante transtornado.
__Fiz. Quer encarar? Respondeu um amarelo, sem camisa, que acabara de saborear uma “branquinha”.
Não demorou muito, formou-se uma pequena aglomeração, mas a turma deu um jeito de acalmar os ânimos dos brigões.
O impressionante é que tudo volta ao normal em questão de minutos. Brigões se abraçam, pedem desculpas, tomam mais uma dose, mais uma, mais uma…
Dezessete horas, após horas de trabalho, os sacerdotes do pileque retomam seus lugares na esquina preferida do bairro. Já não se fala mais em batizados, agora é tomar uma pra banhar, outra pra jantar, outra pra dormir…E, não demora muito, ouve a voz de Valdé “ Goela-de-Aço” batendo em um pandeiro e entoando canções de uma passado recente. Aí a noite fica pequena pra muita gente.

(Texto que escrevi numa época em morei nesse bairro. DESENHO DE UM DIA QUALQUER, é o nome do meu mais recente livro)

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